segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Sorriso do Palhaço Sem Dentes

Depois de alguns dias fora de casa e praticamente sem contato com Mélanie, eu finalmente fui aceito por ela, com as mesmas condições em relação a minha bebida, e agora também estava incluído meu temperamento explosivo, minhas confusões etc.

Fui até minha casa pegar algumas roupas.

- Vai viajar? – Questionou meu velho amigo Arthur.
- Sim, vou ficar alguns dias longe desta prisão. – Respondi com tristeza nos olhos.
- Seu pequeno templo estará seguro, fique tranquilo. Aqui, chegaram estas cartas para você.
- Obrigado, Art. Bom, nos vemos em breve, cuidado com esses vagabundos desesperados que entram aqui.

No caminho dei uma olhada nas cartas. Eram apenas contas, exceto por uma. Estava datilografada e assinada por uma ex-namorada, ou melhor, uma mulher com quem eu tive um caso, sexo, muita bebida e nada além de duas semanas, o que a enlouqueceu.

“Preste bem atenção seu bêbado idiota. Se pra você eu fui só mais uma BOCETA que você podia entrar e sair à hora que bem entendesse, saiba que você está enganado! Seu verme, rabugento, viciado, estúpido, faltam palavras para descrever alguém como você... Nunca você encontrará alguém que tenha te dado amor, como eu dei. Não importa o tempo, eu te amei e você me usou. Caso algum dia você encontre alguém, é melhor ela ter um bom sistema de segurança, por que eu vou acabar com ela! Espero que você morra engasgado no seu próprio vômito, seu merda!”.

Será que ninguém consegue encontrar uma palavra melhor do que essa? Eu odeio a palavra boceta...

Achei que não seria uma boa ideia deixar aquilo chegar perto de Mélanie, ainda mais agora, quando ela acabará de me aceitar em seus braços novamente. Por isso queimei o pedaço de papel.

Fui recebido com um abraço forte e muitos beijos, mas eu ainda podia sentir aquela sensação de que ainda não estava tudo bem.

- Como você tem passado? – Ela me perguntou com certa estranheza.
- Bem, você sabe, nada fora do comum... Apenas tenho sentido sua falta.
- Eu também senti sua falta, meu querido. Mas você sabe muito bem por que nós tivemos de ficar alguns dias afastados, era preciso que você pensasse no que tem acontecido.
- Eu sei...
- Bom, eu tenho de ir trabalhar. Estamos preparando outra exposição, as coisas estão muito corridas, o tempo é curto, então mal consigo descansar. Você poderia fazer algo hoje, só voltarei de noite, por que não sai? Ouvi dizer que um circo veio para cá, passe lá, tente se distrair e sem precisar parar em um bar. – Mélanie não perdia uma oportunidade.
- Não sei não, odeio circos.
- Mas já? Leo, você precisa mudar alguns hábitos, você odeia tudo! Tente relaxar mais, vá até o circo, de algumas risadas e volte para casa para me fazer uma massagem.

O que ela não sabia, é que meu problema com circos vinha se arrastando há anos. Eu odiava palhaços, quando criança, tive uma má experiência com um deles. Fui ao circo com meu tio, estava assustado com a quantidade de pessoas embaixo daquela barraca enorme. Então, quando eu imaginei que poderia começar a relaxar, um homem alto, de roupas bem largas, uma cartola verde e com o rosto pintado se direcionou para a plateia e disse que escolheria alguém para se unir a ele em seu número com cavalos brancos. Muitos se ofereceram para ajudar o homem de batom na cara, mas ele decidiu chamar justamente a criança amedrontada sentada na última cadeira do lugar. Bom, o que aconteceu em seguida não é nada de novo, a criança se escondeu nos braços do tio implorando para ir embora enquanto chorava assustado com aquele bastardo colorido. Eu era a criança.

Passei o dia todo em casa, fumei um maço de cigarros de palha, aquilo estava virando meu novo vicio. Era uma delicia! O gosto, o cheiro e as lembranças de Minas Gerais. Depois das sete horas eu já estava de saco cheio, o sofá adquiriu a forma do meu corpo e a casa estava enfestada de fumaça. Peguei minha flanela, abri as janelas e sai.

Estacionei meu carro enfrente ao circo, estava lotado, como naquela noite. As pessoas riam, espalhavam pipoca por todo canto e a música vinda de dentro era insuportável. Não consegui sair, aquilo tudo me deixou enojado e com muita raiva. Depois de quase trinta minutos eu sai, fiquei em pé, de frente para a entrada e depois de uma longa tragada, me virei, deixando apenas a fumaça de meu cigarro para trás. Foda-se, vou para o bar, amanhã eu me mantenho sóbrio por ela.

O lugar estava quase vazio, apenas um ou outro cliente, já da casa. Tomava uma dose de conhaque e uma garrafa de cerveja, estava na quarta rodada quando ele entrou. Olhei para o lado de vagar, de baixo para cima. O desgraçado parecia ter saído de algum pesadelo ou um filme de terror barato. Calça listrada, laranja, bem suja e com um buraco no joelho. A camisa branca com um colete roxo por cima, o cabelo sujo e ensebado era amarelo. Nariz vermelho, maquiagem borrada e um batom vermelho em volta da boca fazia com que ele tivesse um cara bem triste.

- O que você tá olhando? – Ele não tinha um dente.

Apenas virei meu rosto de volta para meu copo. Não conseguia me concentrar, minha cabeça estava naquela noite, estava naquele palhaço com sorriso quebrado sentado bem ao meu lado tomando uma dose de pinga. Minhas mãos tremiam como nunca. Tomei minha dose, pedi outra e também matei.

- As pessoas acham que só por que eu sou um palhaço deveria ser feliz o tempo inteiro e sair contando piadas... Eu vou contar uma coisa, não é fácil ser sempre alegre! Vocês não imaginam como é possível sofrer sendo feliz desse jeito. – Ele não parava de falar, despejava suas cartas sobre a mesa, soltava toda a sua angústia.
- Ei, por que você não aumenta o volume? – Pediu um dos clientes para o dono do bar.
- HÁ HÁ HÁ O PALHAÇO CHEGOU! VAMOS RIR DELE, VAMOS JOGAR COISAS NELE, AFINAL É SÓ UM PALHAÇO DESDENTADO!

As pessoas ao redor não se manifestavam, eu achava que ninguém mais o via, apenas eu. Ou então eles não ligavam, deviam estar tão bêbados que mal davam ouvidos. Meus copos iam apenas se esvaziando, minha cabeça começou a doer. Ele estava me olhando enquanto falava.

- É eu sou um palhaço, e você? Você é outro palhaço, sim, isso mesmo, para eles lá no planalto, todos somos palhaços. Um bando de porcos.

Virei meu rosto novamente para ele. O monte de bosta estava me olhando fixamente dentro dos olhos. Nunca olhe diretamente para os olhos de um cara bêbado, você pode não aguentar o dano que isso irá lhe causar. Levantei meu último copo sobrevivente e acabei com ele em segundos, sem nem sequer piscar, mantinha meu alvo na mira.

Mudanças não acontecem da noite para o dia, não seriam alguns passeios num circo estúpido que me fariam ser outra pessoa. E quem diabos disse que eu quero ser outra pessoa? Ao inferno com quem não me aceitar, eu bebo, fumo, faço o que quiser, são minhas escolhas e minhas consequências.

- Faça um favor para si e feche muito bem essa sua boca.
- Não me diga o que fazer, eu sou um palhaço, pago minhas contas e sou livre para falar o que quiser, onde quiser.
- Não, você não tem esse direito quando eu estou aqui. E sim, você é a merda de um palhaço, então fique quieto e dê o fora daqui antes que eu te coloque para fora.
- Eu vou contar outra coisa sobre palhaços... Palhaços são...

Eu o interrompi com um soco no canto esquerdo da boca, ele caiu. Quando se levantou, estava sorrindo, um sorriso quebrado e cor de musgo. Ele conseguiu o que queria, desde o inicio era isso, foi tudo planejado. Maldito, eu já podia ouvir aquela música estúpida do circo em minha cabeça outra vez.

Não me contive, mais dois socos diretos no rosto imundo e outro no estômago. Ele caiu sobre o balcão para se apoiar. Segurei firme pela gola de sua camisa, ele sorria, sangrava e gritava para ter mais. Aquela altura nada iria me impedir. Mais socos, mais sangue, mais pesadelos... Deixei o bastardo sem mais dois dentes, um olho roxo, cortes no rosto. Eu fui expulso do bar, para sempre.

Voltei para casa sem perceber que minha mão estava derramando sangue por todo lado. Mélanie chegaria em alguns minutos, eu estava fedendo, estava bêbado e sangrando, não me importava mais. Um calor crescia dentro de mim, e só aumentava, quando ela entrou pela porta e olhou para mim, simplesmente aconteceu. Eu estava puto, era o limite. Não iria mais aguentar aquilo outra vez. Durante toda a minha vida eu era o cara errado, sempre carregava a culpa e quando tentava aliviar as coisas, me atacavam por estar exagerando.

- Mas o que aconteceu com você? – Ela estava desesperada.
- Eu fui ao circo, como você pediu. – Me levantei meio tonto.
- E como você acabou bêbado e sangrando em um circo? – Ela olhava minha mão ensanguentada.
- Não importa como aconteceu, o que interessa é que eu cansei. Mél, eu sou esse cara, você me conheceu assim, se apaixonou por este cara.
- Mas o que...
- Eu não vou mais carregar isso. Em algum momento eu preciso ganhar algo, preciso me sentir confortável, eu preciso relaxar e abaixar a guarda uma vez ou outra. Merda!

Ela me olhava tentando entender se era eu quem dizia aquilo ou se era apenas um bêbado desesperado.

- Eu não posso ficar aqui, amanhã quando estivermos todos sóbrios terminamos essa conversa.

Minha impaciência não me permitiu esperar por uma resposta, então fui embora. Dirigia com raiva, não enxergava sinais de trânsito, curvas, a chuva que caia, nada. Fechei os olhos e respirei fundo, quando os abri um grande clarão me cegava, o som da buzina me calou.

Acordei deitado no banco de trás do meu carro. Com cuidado levantei. Estava parado em frente a uma escola, várias crianças corriam sorrindo brincando entre elas. Uma delas carregava uma máscara de palhaço nas mãos. Não há como escapar dos nossos pesadelos, eles acham uma forma de voltar para nos assombrar, talvez seja melhor enfrenta-los de uma vez. Eu não sei como sobrevivi à noite anterior, não sei o que iria acontecer com meu relacionamento, não quero perde-la, mas preciso de algo que me faça senti-la cada vez mais presente dentro de mim e eu dentro dela. Eu precisava de um copo de café e um cigarro.

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