segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Anáfora

Eu mal enxergava a estrada, chovia muito e eu estava bêbado. Devia passar das 4 da madrugada, antes estávamos eu, Bob, Noel e Alex em um bar conversando, bebendo, fazendo o que sempre fazíamos as quartas assistindo futebol. A noite com eles tinha sido mais longa do que de costume, fora isso, eu também me sentia diferente. O sentimentalismo rondava meu coração.

Simplesmente acelerava, não havia pedágios e nem obstáculos em meu caminho. Um bom Blues fazia a trilha sonora, mas não era a música que eu escutava, sua voz é que encantava meus ouvidos. Aos poucos, sua imagem também surgia com lembranças muito especiais para mim. Sinto tanto a sua falta.

O barulho do motor ao mesmo tempo em que me acalmava, também acelerava meus batimentos cardíacos, é esse tipo de sensação que se procura quando se compra um carro ou uma moto. Um homem tem de criar seus princípios, um homem sempre tem uma garrafa em mãos, um homem sempre tem um motor para acelerar seu coração.

Diminui a velocidade, andava a 80 km/h. Acendi um cigarro e comecei a pensar. Lembrei-me das vezes que íamos visita-la, do carinho que recebíamos e logo depois a velha cobrança das visitas cada vez menos frequentes. Sempre me arrependi disso.

Decidi parar em algum buraco na beira da estrada para reabastecer o carro e meu fígado. Parei no primeiro lugar que encontrei.

Casmurro
Restaurante, lanchonete e bar.

Abasteci o carro, fumei. A chuva já tinha parado.

- Sua vadia, você me traiu!
- O que você tá falando, Bentinho?
- Vaca, cala essa boca. Eu vi quem saiu de dentro do banheiro antes de você.
- O que...
- Eu te mato! Acabou eu quero o divórcio!

Entrei sem descobrir o fim daquela história.

O lugar estava cheio demais para àquela hora.

- E ai, qual a boa, Capitão?
- A boa? É, me de uma da boa.

Ele pegou uma garrafa de Velho Barreiro que de tão velha o rótulo estava aos pedaços e a garrafa toda empoeirada. Me deu um copo cheio. Virei. Mais um. Virei. Outro. Tossi, depois virei.

- Você vai capotar no carro.
- Ou junto dele, veremos o que é melhor.
- Gostei de você, sujeito.
- Eu??
- É.
- Obrigado.

Mais uma dose e eu estava partindo. O casal não estava mais ali, ele nunca mais seria o mesmo.

De volta à estrada dirigindo em direção as mágoas. Rádio desligado, eu e meu carro conversávamos. Ele me entendia como ninguém.

Começamos a descer a serra na mesma velocidade que cortamos o asfalto da rodovia. Era bela a visão lá de cima. O mar refletia as luzes da cidade, a lua já se mandou, o sol viria em algumas horas. O céu aos poucos ia clareando a tons de cinza, a chuva voltaria logo.

Passamos pela serra, agora era apenas uma grande linha reta na direção certa. Meus pensamentos foram dominados outra vez, não o ouvia falando comigo, ouvia outra voz, a sua voz... Ela me pedia calma, não queria me ver daquele jeito, triste. Eu não queria decepciona-la desse jeito, será que eu seria capaz?

Parei num semáforo, fechei os olhos, sentia minhas mãos tremulas piores do que das outras vezes. Meu carro tentava me acalmar, rangia seu motor, tremia junto comigo. Ele queria apenas me ajudar, é um grande amigo. Abri os olhos e pisei fundo, me sentia como um animal outra vez.

O muro descascado, céu nublado. Estacionei, encarei aquele portão enferrujado, era horrível, a pior sensação da minha vida de volta com força. Mas não me derrubou, passei pelo portão, andava entre túmulos, as moscas voavam em bandos, fedia. Então, eu a encontrei.

Foi tão triste vê-la ali no meio daquela porcaria toda, você merece coisa muito melhor, espero que agora tenha alcançado esse lugar maravilhoso.
Mal sabia o que dizer, eu estava paralisado, minhas mãos se acalmaram, eu não me movia. Lentamente peguei um cigarro e o acendi. A chuva voltou. Traguei, soltei, olhei para ela... Passamos horas conversando, não há definição para o momento, triste, feliz, amargo, nada. Apenas aconteceu, é sempre bom revê-la.