segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Meia Palavra Basta

Passava da meia-noite, decidiu ligar e colocar ponto final à sua insônia.


- Alô?
- Te acordei?
- Mais ou menos... Eu tava assistindo um filme.
- Qual filme?
- Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças.
- Muito bom esse.
- Por que me ligou?

...

- Sei o que acontece com você.
- Sabe?
- Sim.

...

- Mas não podemos.
- Podemos sim.
- Não.
- Você não quer.

...

- Quer?
- Não podemos!
- Eu sabia! Você não quer.

Desligou.

Cinco minutos se passaram, ela ligou de volta. Ele assistia Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças.

- Eu quero, eu te quero há um bom tempo.
- Quer?

Ele sorria.

- Sim... Mas não deveríamos, não deveria ser tão difícil, não deveria ser tão complicado.

(Silêncio)

- Você me ama?

Não precisava nem pensar.

- Gostaria de dizer que te amo... Mas você não nos deu essa chance ainda.

...

...

- Boa noite, tenha bons sonhos.
- Você também.
- Eu te amo.
- Eu também.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Tio


Queimei minha mão fazendo café naquela manhã, encontrei meus óculos ao lado do meu travesseiro, peguei no sono na noite passada enquanto estudava e devo ter dormido em cima dos malditos olhos de vidro. Fazia publicidade na PUC- Campinas, já me sentia vendido antes mesmo de concluir o curso. Perto da hora do almoço, coloquei uma lasanha congelada para esquentar no micro-ondas e a caixa me contou após dez minutos de espera que a lasanha estava vencida há duas semanas. Saí de casa deixando a porta aberta e o micro-ondas ligado, peguei meu maço de cigarros, fazia duas semanas que eu não fumava.

Fui até o Parque Portugal a pé, pensei que poderia me fazer bem um pouco de ar puro, ou então eu sufocaria todos ao meu redor com a fumaça dos meus cigarros, quem sabe até iniciaria um incêndio... Fiquei sentado lá observando as famílias aproveitando os poucos minutos que tinham durante a semana para se divertir, alguns casais se amavam até fazendo exercícios juntos, me senti triste por não ter pegado um livro antes de sair.

Esqueci-me de deixar o celular em casa, ele começou a vibrar dentro do meu bolso. Na quinta vez que ele se sacudia todo fui ver quem me ligava. Minha mãe sempre escolhia a hora errada para me ligar e me tratar como o filhinho que decidiu sair de casa para ganhar o mundo. Não atendi, desliguei aquela porcaria.

Estava acendendo outro cigarro quando fui atingido pela copa do mundo, uma “brazuca” me acertou em cheio na cabeça. Perdi meu cigarro, minha consciência e a paciência. Olhei para trás, era uma criança com a camisa da seleção brasileira de 2002, a nove do Ronaldo, eu tinha uma idêntica naquela época, presente do meu velho pai.

- Desculpa tio... – Ele estava com muita vergonha.
- Relaxa, tenho esse cabeção pra isso mesmo. – Eu ainda tentava fazer piadas.
- Cê viu pra onde foi a minha bola?
- Sim, tá aqui. – Me levantei e peguei a bola do chão. – Toma.
- Brigado tio!
- De nada.

Ele não foi embora, se sentou ao meu lado e ficou me olhando.

- Você tá triste tio?
- Não sei, acho que sim.
- Quer brincar de copa do mundo comigo e com meu pai?

Lembrei-me de quando eu jogava bola na praia com meu avô, meus primos, meu pai. Bons tempos.

- Não me desculpa, essa brincadeira é boa demais, mas é melhor você aproveitar com seu pai.
- Tá bom.

Parecia ter ficado chateado por alguns segundos, mas abriu um sorriso enorme quando seu pai chegou procurando por ele. Saiu correndo para abraça-lo, mas voltou pela última vez para se despedir.

- Fica triste não tio, tá bom?

Era como olhar meu reflexo num espelho do passado, pensando bem era quase como um yin-yang, os opostos/complementares gerados pelo absoluto ou pelo caminho, o Tao. O questionamento é frequente no dia a dia, mas dar-lhe o papel principal é perigoso, questionando se obtêm respostas, duvidando (de forma exagerada) se ganha incertezas, desespero, solidão.

Nos despedimos com um cumprimento de punho fechado.

- Tchau tio!

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Ele é Especial


Eduardo era um cara diferente, estava sempre em destaque comparado aos outros. Quando criança era o menino mais engraçado da turma, fazia até a professora chata de matemática rir de suas brincadeiras bobas. Quando adolescente ele era o menino com carinha de anjo, sabia beijar de língua há dois anos e meio, não era rico, mas ganhava blusas da Hollister e GAP dos seus primos mais velhos que iam bastante para fora do país com seus pais.

Mas foi em sua fase “pré-adulta” que Eduardo viu seu potencial chegar a um nível fora de suas expectativas. Esperto, como sempre, ele aprendeu com os primos mais velhos, com alguns filmes, livros e usando sua imaginação a arte de seduzir uma mulher. Não apenas de seduzi-las, mas de engana-las e manipula-las. Eduardo cortava o cabelo, fazia a barba, escolhia com maestria suas roupas de acordo com a estação do ano, com o lugar que passaria a noite ou até mesmo para ir ao trabalho e encontrar com a nova secretária boazuda que o chefe lhe fez o favor de contratar.

Após uma noite de bebedeira não planejada, ele e alguns amigos foram parar em um estúdio de tatuagem e piercing. Depois daquela noite, ele e os amigos criaram o ditado “se beber, nunca, nunca entre em um estúdio de tatuagem!”, uma mistura de “se dirigir, não beba” com “cu de bêbado não tem dono”. Um amigo fez uma caveira mexicana no braço, o outro uma carpa nas costas e Eduardo uma cobra no antebraço, mas era pouco para ele. Como já disse antes, Eduardo sempre se destacava. Apenas uma cobra? Não, impossível parar por ai...

Seis meses depois Eduardo viu seu nome e sua fama se espalharem por toda a cidade de São Paulo. As mulheres não resistiam a seu charme, os homens tinham inveja do seu talento, o menino vindo do interior apareceu para colonizar a metrópole com o prazer na ponta da língua. Ele ficou conhecido como “ponta dupla”, “linguarudo” e “língua de cobra”.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Incidente

Não era um dia qualquer, era o pior dia daquele mês para mim. Após ser jogado pra fora de casa pela minha tão “querida” noiva e ser obrigado a pedir hospedagem na casa de um amigo, afinal de contas, as contas não tinham fim, assim como minhas dores de estômago e as enxaquecas. A tal da sorte não dava as caras ultimamente, nem pra mim, nem pro meu time ou pros meus relacionamentos pessoais. Era como se todos ao meu redor tivessem 90% de chance a mais de ganhar na loteria, por exemplo.

A razão pela qual aquele dia, ou melhor, aquela manhã era considerada a pior ainda estava por vir.


Levantei cedo graças a combinação das minhas dores de estômago com o barulho que faziam no andar de cima que estava em reforma o mês inteiro. Encarando-me no espelho vi claramente minha ressaca através das olheiras, por isso saí praticamente correndo da frente do espelho para a varanda ascender um cigarro. Os remédios pra dor não faziam mais efeito, mas eu os tomava mesmo assim, apenas pela sensação de que ao menos eu estava tentando resolver um dos meus problemas.

Perdi a noção do tempo sentado observando o céu pela varanda, por minutos pude me perder nas nuvens deixando as dores de lado, mas elas voltaram com ainda mais força, força suficiente pra me derrubar da cadeira aos berros. Arrastei-me até o sofá da sala, escalei pelos braços até o ponto de me atirar de costas nele ficando todo desajeitado. Os remédios de antes haviam acabado, apenas a embalagem vazia estava sobre a mesa de centro.

Ainda deitado no sofá, descansei tempo suficiente para fumar mais um cigarro. Voltei para o banheiro para lavar o rosto e enxaguar a boca, segui para o quarto, troquei de roupa, mas continuava com minha aparência típica dos últimos meses, eu era o trapo vestido com roupas desbotadas. Peguei as chaves, dinheiro, receita e esperava o elevador chegar.

Entrei, estava vazio. Morávamos no décimo segundo andar, enquanto descia quase o prédio inteiro lá dentro sozinho tive a sensação de me ver em terceira pessoa e, sinceramente, nenhuma das outras duas pessoas me agradava, muito menos em terceira, todo imponente como “não-pessoa diretamente participante do discurso”... Charlatão!

O elevador parou no sexto andar, entraram duas pessoas, mãe e filho. Meu coração pulou para a boca assim que meus olhos a cobriram de elogios, eu literalmente engasguei naquele momento, o que fez o pequeno rir da cena e a mãe o censurar pela reação. Desculpei-me, foi o que tentei, mas minha voz quase nunca sai na primeira tentativa.

Desde quando me mudei para lá, eu a tinha visto apenas duas ou três vezes, não sei como as descrever. Mas posso tentar ao menos descrever a mãe. Moradora do sexto andar, ela vivia junto com seu único filho, o pequenino tinha cerca de cinco anos. O fato de ser divorciada e livre como um pássaro aumentava minha angústia por uma conversa com ela, como nos velhos tempos em que eu tomaria a iniciativa. Mas, além das dores de estômago e da falta de confiança, algo por trás de tamanha beleza me segurava.

O elevador parou outra vez, mas dessa vez ele parou com um tranco que chacoalhou todo o cubículo com ocupação máxima de até oito pessoas não obesas. Como alguém pode se achar com falta de sorte tendo ao lado uma mulher de longos cabelos negros e a pele branca cobrindo suas pernas finas, o que destacava seus lábios rosados, ainda que fossem de um rosado claro. Mas é claro, o problema era óbvio, um pequeno problema para ser mais específico. Nenhuma fantasia sexual, até mesmo a mais clichê delas, envolve uma criança na cena, bom, talvez... Nove meses depois... Quem sabe?

- Manhê, o quequi aconteceu? – Seus olhos amedrontados começaram a se encher de lágrimas.
- Calma Juninho, não deve ser nada de mais. Daqui a pouco o elevador volta a funcionar. – Disse a mãe em tom reconfortante.

Agarrado as pernas de sua mãe Juninho me olhava assustado prestes a chorar. Agora era sua mãe quem me olhava esperando algum tipo de apoio as suas palavras.

Hesitei em falar alguma bobagem sem pensar, mas seus olhos me pediam ajuda, tinha se passado dez minutos e eu ainda estava calado. Éramos dois adultos e uma criança assustada, estávamos presos dentre daquele elevador. Eu precisava tomar frente assumindo o controle da situação, mesmo não tendo controle nenhum sobre nada.

Abaixei-me para ficar a altura do menino.

- Ei, não se preocupa, ok? Ficaremos bem. – Disse com confiança em minha voz.

Ele entendeu a mensagem, engoliu o choro após acreditar nas minhas palavras. Levantei-me, mas não deixei de dar uma rápida olhada para as pernas finas dela.

- Obrigada. – Ela disse apenas movendo os lábios para que ele não perdesse seu momento de tranquilidade.

Respondi com um sorriso envergonhado.

- Prazer, me chamo Sarah.
- Paulo.
- E esse é o Juninho. – Fez um carinho tirando a franja do rosto do garoto.
- Olá. – Respondi.
- Você é novo aqui?
- De certa forma... Estou ficando na casa de um amigo aqui.
- Ricardo, certo?
- Sim, ele mesmo. Eu não saio muito de dentro do apartamento, acho que é por isso que não nos conhecemos antes. – Era isso ou o fato de eu estar evitando contato com outros seres pensantes.
- Não, não. Eu já te vi por aqui algumas vezes. – Puxou uma mecha de cabelo para trás da orelha.

Fiz cara de sofrimento, a maldita dor no estômago voltava para estragar o momento para mim.

- Tá tudo bem?
- Sim... Quer dizer, não. Eu tô com uma dor horrível no estômago.
- Há há há, você tá com vontade de fazer cocô! – Disse o menino.
- Junior! Não tira sarro da dor dos outros. – Repreendeu a mãe.
- Não tem problema, talvez seja isso que me cure desse sofrimento. – Falei olhando pra ele.

Logo que terminei de falar tive vontade de abrir a porta do elevador e me jogar, se é que era possível. Falar que cagar resolveria meu problema? Quem é o idiota que diz uma coisa dessas na frente de uma mulher linda como Sarah?! Eu me odiei tanto que contive a responder apenas e não mais falar o que me vinha à cabeça. Talvez eu precisasse mesmo colocar algumas coisas pra fora, faria qualquer coisa para acabar com aquilo.

Quarenta minutos se passaram, já estávamos entregues sentados no chão gelado do elevador a espera de uma salvação.

- Ninguém sabe que estamos aqui? A essa altura não valeria a pena sair de casa pra levar ele pra escola!

Sarah estava claramente desesperada, o que não contribuía para manter Juninho calmo, por sorte ele havia pegado no sono e o único a se prejudicar com o tom de desespero dela era eu.

Mas o que eu iria fazer? O que eu deveria falar? Eu era a pior companhia que alguém poderia ter naquele momento, talvez fosse melhor estar sozinha dentro do elevador do que estar ao meu lado me ouvindo falar sobre merda...

- Por favor, não me entenda mal tudo aquilo que eu disse antes... Foi só pra fazer o menino não se sentir mal por ter dado risada.

Ela me olhava calada.

- Pra ser sincero eu não tenho vivido a minha melhor fase, o que provavelmente é fácil de perceber. Eu tenho evitado as pessoas, mas... Acho que já é hora de mudar isso. Você gostaria de...

O elevador balançou, a energia do prédio voltou, estávamos descendo novamente. As portas se abriram e enfim saímos do elevador.

- Que alívio! Acorda meu bem, tudo voltou ao normal.

Não adiantou, ela continuava segurando o sonolento garoto em seus braços.

- Acho melhor eu coloca-lo na cama enquanto preparo algo pra ele comer.

Olhei para meu relógio, já passava das 13h.

- Tá bom.

Ela entrou no elevador.

- Paulo! – Exclamou Sarah segurando a porta.
- O quê?
- Eu estava esperando isso fazia um tempo, mas eu cansei. – Disse ela sorridente – Me liga pelo interfone do prédio pra gente combinar alguma coisa, que tal?
- Claro, farei isso!
- Até logo.

Sai com uma expressão de alegria em meu rosto, seria sorte? Não, eu não acredito mais nisso. Era apenas uma questão de autoestima. Minhas dores sumiram, ainda assim iria buscar meus remédios, só por precaução. Não era mais manhã, era o começo do melhor dia daquela semana.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Pré-Show


Apoiava minha cabeça pensativa em minhas mãos, mantinha os olhos fechados e a respiração cronometrada. Com alguns drinks e cigarros começava a me acalmar. O pescoço relaxava, o tique nas pernas era constante, mas o olhar mantinha-se focado no que ainda estava para acontecer. No momento em que eu saísse daquele camarim enfrentaria toda a plateia sozinho, isso se não tropeçasse no palco ou entrasse em pânico. Nunca fui bom em manter pensamentos positivos.

Minhas tentativas de manter o controle eram momentâneas. Quanto mais nervoso eu ficava, mais vezes eu revisava meu material para o espetáculo, meu setlist. Não me sentia seguro com meu potencial, não me sentia seguro naquele terno barato, minha barba coçava, meu tique piorava e eu estava bêbado faltando alguns minutos para começar o que nomearam de “atração principal”.

Algumas pessoas ainda estavam dentro do meu camarim bebendo e celebrando a minha grande noite, demorei a me dar conta de que conhecia três, talvez quatro dentre eles. Por sorte me escondia por trás dos meus óculos escuros e da fumaça dos meus cigarros, acendia um no final do outro. Com tapinhas nas costas e palavras de incentivo elas saíram me deixando em paz com meu desespero.

No momento em que todas saíram, tranquei a porta, ou melhor, chutei a poltrona até parar atrás da porta. Cadeiras arremessadas contra a parede, quadros e espelhos rachados com socos e pontapés, cinzeiros atirados pela janela e restos de garrafas espalhados pelo chão. Me acomodei na poltrona novamente, após respirar fundo tomei um longo gole até não sentir mais nada. Podiam arrancar meus dentes naquele momento, eu estava livre.

Fui até o que sobrará do espelho, ajeitei a gravata, puxei os pelos da barba para baixo, assim como meu cabelo. Treinei um sorriso, não conseguia nada perto do que pudesse se chamar de natural. Acendi outro cigarro enquanto tirava a poltrona do caminho.

Podia ouvir o mundo ao meu redor outra vez, as vozes impacientes pela apresentação da noite, os organizadores assustados com o barulho que devo ter feito trancado naquele camarim. A última golada, eu estava livre. O sorriso veio fácil como o tropeço que eu daria ao subir no palco.

As luzes ofuscavam a minha visão, recoloquei meus óculos e então pude ver tudo, uma escrivaninha, um frigobar cheio de cervejas e uma multidão de cabecinhas escuras como sombra, essas cabecinhas gritavam meu nome, já estavam pegando fogo. Eu sentia o fogo dentro do meu peito esquentar cada vez mais. Coloquei meus escritos sobre a mesa, abri uma cerveja e, logo depois de um rápido arroto, dei início ao show.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Opostos


Ele tinha seu horário específico de almoço, sempre a partir das 14, assim evitava fila para fazer seu prato, consequentemente, evitaria crianças reclamando dos vegetais e executivos apressados engolindo suas refeições que até levavam seu nome (prato executivo). Já conhecia o churrasqueiro, então conseguia as melhores fatias de carne, sua amada carne praticamente crua jorrando sangue.

Por conta do trânsito e da reunião que estava sempre atrasando seus compromissos, Ela chegou atrasada no restaurante. Com seu inseparável fone de ouvido fez seu prato com muita salada, uma porção de arroz integral e uma pequena fatia de peixe. Pediu um suco de laranja para acompanhar. Sentou-se distraída com a música, seu chefe era o maestro da orquestra sinfônica que tocava em seus pensamentos.

Por debaixo da mesa Ele abria seu cantil, despejava seu conhaque dentro do copo com gelo, em seguida misturava com um dedo de coca. Ela o assistia fazer isso paralisada por meros segundos sem entender. Retomou ao seu suco, puro. Logo voltaria a observa-lo comendo seu pedaço de boi abatido para churrasco.

Quando Ele chegou ao terceiro copo e ainda não tinha comido metade da comida em seu prato Ela tomou a iniciativa.

- Eu não sei pra quem você quer se mostrar. Mal se esforça pra esconder essa garrafa.

Ele a olhava calado esperando que terminasse o que dizia.

- Talvez eu não queira me mostrar pra ninguém, talvez eu só queira tomar meu drink.

Ela respondeu com um som de deboche e descrença.

- De qualquer forma, fico feliz em saber que chamei sua atenção.

Agora com um sorriso no canto do lábio de vergonha Ela disse:

- Não sei o que deve te matar primeiro, essa carne quase crua ou cirrose.
- Não pretendo morrer assim.
- Você tem um plano pra morrer?
- Claro! Pretendo morrer com uma bala perdida ou algo do tipo.
- O que?
- Se eu salvar uma velhinha na rua ou uma criança e tomar um tiro certeiro, eu morrerei como herói.

Ela o olhou com seu jeans velho, sapatos gastos e uma velha camisa preta desbotada tirando suas próprias conclusões.

- É, só desse jeito...

Ele sorria encarando o belo par de olhos a sua frente.

- Você gostou de me analisar? E quanto a você? Toda certinha com sua salada, seu suquinho e, há há há, essa roupa de executiva moderna.
- Quem você pensa que é?!
- Vamos lá mulher, mostre um pouco mais dessas pernas! Um botão? Abre uns dois ou três, deixa as crianças respirarem. Com essa camiseta de seda fechada até o pescoço fica difícil!

Levantou-se, foi até a mesa dela. Abaixou-se e disse:

- E por último, você não precisa de tanta maquiagem. Tem um rosto lindo e natural, aproveite isso.

Não trocaram mais nenhuma palavra até ambos terminarem suas refeições e se direcionarem até o balcão para pagar a conta. Ela saiu do banheiro ainda atordoada e o encontrou na fila.

- Essa fica por mim conta.
- Não preciso que você pague. Não me deve nada.
- Eu sei, mas faço questão.
- Olha aqui, você fala como se fosse o dono de todas as verdades!
- Ei, eu só quero pagar a conta pra você. Será um prazer.
- Então paga logo. – Entregou a conta já impaciente.
- Obrigado... Valentina
- Esse não é meu nome.
- É um lindo nome, combina com seu rosto.

Quinze anos depois eles sairiam daquele mesmo restaurante acompanhados de uma linda menina, Valentina, a primeira filha do casal.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Ganhando Confiança

Uma longa conversa com o espelho, alguns cigarros apagados na pia e eu já me sentia preparado para o que estava por vir. O desafio era grande, ao menos para mim, mas eu estava tomando um novo rumo para a minha vida. Roupas limpas, bebedeira controlada e uma linda mulher ao meu lado para ler durante o café da manhã os textos que eu escrevia durante a madrugada. Então, por que não deixar de uma vez que o barbeiro apare minha barba?


Antes de entrar na barbearia tive de respirar fundo, “não é nada demais, apenas um estranho cortando alguns pelos da minha cara rabiscada com cicatrizes”, confiança é o que guia o homem para suas maiores glórias.

- E então, como quer o corte hoje?
- Não sei... – Eu nunca sabia. – Nada muito exagerado, nada muito curto, nada que me traga arrependimentos pelo dinheiro gasto.
- Ou seja, o de sempre?
- Digamos que sim.

Sua compreensão com a minha falta de atitudes para tomar alguma decisão me agradava, esse era um dos fatores a seu favor para ganhar minha confiança.

O cabelo estava quase pronto, não sabia o que ele tinha feito, mas não sentia arrependimento algum. Até então.

- Vai querer aparar a barba hoje?

Ele sempre me perguntava, eu sempre recusava. Era o momento da verdade.

- Hm... Eu não sei... – Pensei em minha mulher deitada ao meu lado enquanto eu escrevia algo sobre suas belas pernas brancas. – Quer saber? Tá legal apare a barba.

Seus olhos saltaram, mas logo voltaram ao normal. Acho que nem mesmo a recepcionista que nunca parava de fofocar sobre o marido da sua “cliente favorita” imaginava que essas palavras saíssem da minha boca.

O barulho da máquina me trazia arrepios, era exatamente como quando uma criança vai ao dentista pela primeira vez ou quando o velho e sua velha brincavam de roleta russa bêbados com seu revólver apontando um para a cabeça do outro. Era uma sensação terrível pressionando meu peito abatido pelos cigarros.

Antes que tocasse meu rosto segurei-o pelo pulso assustando todos ao redor.

- Espera, eu não posso fazer isso!

Ele ficou apenas me olhando, ainda assustado com a minha reação impulsiva.

- Olha. Eu sempre venho até aqui com isso na cabeça, mas não dá... Pra vocês é um montante de pelos sujos que me dão a aparência de qualquer morador de rua, mas tem alguma coisa além disso dentro de mim que eu nem quero saber de qual parte da minha infância isso veio... Só não dá...

O barbeiro me olhava mais calmo, soltei seu pulso e ele desligou a máquina. Eu sentia o olhar de todos ao redor, cada movimento meu me deixava mais e mais desconfortável, abaixei a cabeça confusa com toda aquela cena vinda de um curta-metragem europeu estúpido.

- Você vê a foto daquele gordinho careca na parede? Eu nem sou budista, mas olhar para a expressão de confiança e autocontrole em seu rosto me faz ter energia para aguentar dias estressantes, corridos ou normais. Eu, como qualquer outro, só quero acreditar que se de um pedaço de papel posso tirar forças, por que não da confiança em mim?

Cada vez mais vejo provas de que chega um período na vida em que passamos quase o tempo todo por testes. Teste de confiança, teste de fidelidade, teste de inteligência, teste de agilidade, testes e mais testes. Começo a pensar como era boa minha infância ingênua. Naquela época era possível acreditar em fantasias e vivê-las. Felizmente quando criança nós não temos em mente o que se aprende depois de velho, se fosse assim, não haveria serial killers, pois esses sim seriam pessoas sãs.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Romance Moderno é Romance de Boteco

“Eu me sinto tão sozinha desde então...” – Ela escreveu em um guardanapo, tentando ser discreta, usava algumas das garrafas de cerveja que estava sobre a mesa para disfarçar o que fazia. Seus amigos em volta da mesa conversando e dando risada mal notavam sua presença ali, mesmo ela não sendo o tipo de ficar calada por muito tempo em seus próprios pensamentos, ainda mais quando estavam todos reunidos em um bar.


Guardou o papel em seu bolso, devolveu a caneta para a amiga ao lado, mas sua cabeça continuava presa a suas reflexões parcialmente expostas em um pedaço rasgado de papel. Qualquer um que olhasse bem para seu rosto veria que algo havia de diferente, mas poucos olhariam além do óbvio, e o número de candidatos diminuía a cada garrafa que se esvaziava dentro do bar lotado.

Ela não se entregaria fácil, “Mais uma dose? É claro que eu tô afim”, a trilha sonora de sua noite resumida em uma frase. Por mais duro que fosse ela mantinha sua postura ereta, o copo meio cheio, a risada quase natural, que enganava a todos os bêbados ao seu redor na mesa.

Sua distração nas conversas bobas e sem sentido se concretizou, para alivio de sua mente desgastada de tantos pensamentos que iam e vinham ao longo daquela noite. Até que seus amigos se espalharam, alguns para a pista de dança, outros para o banheiro ou para área de fumante, deixando-a sozinha.

Olhando fixamente para o copo suado de cerveja tomou um susto que a fez colocar a mão sobre o coração acelerado, um sujeito desconhecido caiu sentado em sua frente no lugar deixado por um de seus amigos de bar. Com mais calma pode analisar o tal sujeito, barba ligeiramente feita, um sorriso clássico, a camisa xadrez escura e um copo na mão, tinha claramente passado do ponto.

- Oi... Eu não te conheço... – Ele afirmou de maneira questionável.
- É, eu sei disso. Você caiu na minha mesa.
- Então foi isso que aconteceu? – Abriu um sorriso besta enquanto refletia olhando para as luzes que piscavam atrás do balcão.

Ela não dava tanta atenção para o pobre coitado. Ele continuava sentado em sua frente, agora, olhando para seu copo.

Quando percebeu que não estava a deixando confortável, nem sendo motivado a continuar como uma companhia inusitada. Se levantou.

- Desculpa te atrapalhar.
- Não foi nada. – Não levantou os olhos quando o respondeu.

Ele já ia saindo em direção ao balcão, mas se conteve. Voltou para ela e perguntou:

- Você tá bem?
- Que?
- Perguntei se você tá legal, se aconteceu alguma coisa.
- Por que a pergunta?
- Bom, você tem muitas garrafas em cima da mesa, tá sozinha, nenhum namorado me chutou pra fora da mesa e... Desculpa, mas você tá com uma carinha tão triste.

Ela hesitou em olhar para quem pronunciava aquelas palavras tão sinceras e enroladas.

- Tô bem, não sei de onde tirou isso. Meus amigos foram dar uma volta, só isso.

Persistente, ele se abaixou próximo a ela, levantou suavemente seu rosto triste com os dedos.

- Ei... Não precisa ficar na defensiva, eu só não acho justo ver tanta gente se divertindo aqui e você sentada sozinha com tanta coisa triste brilhando nos seus olhos.

Por um instante ela pensou que iria chorar. Ele se sentou novamente em sua frente, malandro, encheu seu copo com uma das garrafas deixadas sobre a mesa.

- Posso te fazer companhia até que um dos seus amigos volte? – Perguntou inocentemente.
- Tudo bem, mas sem segundas intenções. Ainda não bebi o suficiente.
- Então tem um “ainda”?

Ela se surpreendeu com o que havia dito e com a resposta do desconhecido.

- Tô brincando, relaxa. Eu só vou te fazer companhia. Vai ser bom pra eu me recompor também, não tem um lugar pra sentar por aqui.
- Se recompor? Você tá bebendo mesmo sentado, vai levantar e cair de novo.
- Não tem problema, eu caio onde devo cair. Sou como um ajudante do bar, mas para os problemas e frustrações dos outros.
- Virou conselheiro de boteco?
- É como ganho a vida...

Pronto, com poucas palavras ele já conseguia tirar um sorriso sincero de uma menina desconhecida para ele, mas que, talvez, precisasse de ajuda, de alguma forma de conforto difícil de pedir para qualquer um, até mesmo para seu amigo mais próximo.

Como se tivessem planejado, seus amigos demoraram cerca de uma hora e meia até decidirem voltar todos na mesma hora. Mas já não fazia diferença, a garota não usava a cabeça para pensar em seus problemas, se sentia leve novamente, como se o sujeito do bar tivesse tirado o peso dela e guardado em si. “Seria isso real?”. Ela se perguntava com um medo que se perdia na próxima piada boba que ele contava para alegra-la. Quando deram conta que já passava das quatro horas e que ambos tinham dispensado suas respectivas companhias, ela os amigos e ele os primos, não se importavam, a noite faria o resto.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Balanço de Ano


O circo estava montado, envolta da mesa de truco, todos os apaixonados por pinga gritavam, falavam sobre quem ficaria pior até o fim da noite e quem seria o privilegiado no começo da manhã seguinte quando acordaria ao lado da “tal”. Mas, como manda a tradição de fim de ano, alguém tinha de tocar no assunto “balanço de ano”. Sempre tinha o filho da puta pra trazer o tópico para a roda.

- Meu amigo, esse ano eu não pude reclamar de nada! Me casei (...)
- Espera até ano que vem...

Um olhar furioso foi lançado para todos os palhaços da roda que riam daquela piada.

- (...) consegui aquele emprego na firma e finalmente quitei a dívida do carro.
- Pensando assim... Acho que não me dei tão mal.
- Como assim?
- Meu noivado acabou, mas pelo menos fiquei com o barraco, sem prestações!
- As mulheres se vão, nossos barracos nos fortalecem. – Disse o filósofo do sindicato dos cornos.

Continuei quieto, jogando com a paciência do pôquer com uma pilha de latas de cervejas vazias como plateia ao meu lado. Eles continuaram com aquela conversa mole, que na verdade era apenas um discurso para mostrar quem afundou seu barco no oceano, mas manteve o pequeno bote salva-vidas, ou apenas a boia de emergência.

- Eu fico satisfeito que mais um ano se passou e estou respirando para ver a chegada do próximo. E esse sim será O ano!

Todos querem acreditar nisso.

- É isso ai cara, não fica pra baixo por que já tá pra começar o nosso ano.

O sujeito da expressão mais falsa se levantou:

- Um brinde ao novo ano!

Todos os sujeitos se levantaram para um brinde, felizmente, os jogadores profissionais do truco de boteco sabem que a regra do brinde não se aplicava a nós, afinal, estávamos em uma acirrada mão de onze.

A última ceia foi servida, nos juntamos à nossas amadas e desejadas esposas, namoradas e a “tal” para a refeição. Logo após o jantar iríamos contemplar a virada de ano com mais e mais álcool, pelo menos alguns pararam de beber para comer.

- Todos deem as mãos, por favor.

Um mau pressentimento estava no ar, novamente.

- Como este ano todos puderam vir à nossa casa, - Olhava para o marido claramente bêbado – não poderíamos ficar sem esse momento tão importante, não é mesmo? – Uma risada falsa, outro olhar malvado para o marido – Bom, que tal todos agradecermos pelo que de mais importante que nos aconteceu nesse ano?
- Eu só queria agradecer a companhia de todos vocês em momentos difíceis que tivemos nesse ano.
- Meu ano não seria o mesmo sem vocês.
- Com o nosso bebê a caminho, acho que não preciso dizer mais nada.

Apertaram forte a minha mão, “O que foi? Não fui eu quem fez a criança!”.

- Que tal o último brinde?

Novamente, o brinde, desta vez eu participava.

O mar de branco sobre a areia da praia não atrapalhava em nada a minha visão do verdadeiro mar, o oceano continuava a me acenar novos horizontes junto dele um vento forte que levantava e abaixava devagar as pontas do meu cabelo. O céu escuro começou a gritar, piscar e brilhar nos corpos brancos ao meu redor. Meus olhos fixados bem na ponta da parte baixa da garrafa que fazia as luzes coloridas do céu refletirem como pequenos diamantes caindo lá de cima.

Eu não precisava de nenhum balanço ou reflexão para o ano que ficou para trás, dentro de mim havia uma certeza que a minha cabeça tentava entender para colocar em prática, mas isso não era nenhuma novidade naquele momento. Fechei os olhos por poucos segundos como sinal de algum tipo de afirmação relacionada aquele sentimento que coçava o meu cérebro. Enfim pude apreciar o final do espetáculo de fogos no céu.

Naquela noite eu voltei para casa sozinho, por opção minha.