terça-feira, 25 de junho de 2013

Marcando Território


Foi em um domingo de manhã enquanto eu fazia como mandava o hábito, tomava meu café sem açúcar e lia o jornal, que percebi a situação em que eu estava vivendo. Se passaram duas semanas e eu nem sequer tinha procurado um lugar para morar, estava acampado na casa de Mélanie como um agregado. Era impossível não pensar onde a minha vida foi chegar.

A campainha tocou, fui atender ainda com aquele pensamento flutuando em minha mente.

- Leonard? Mas que surpresa!

Eram os pais de Mélanie, Bernard e Noelle.

- Oi, como vocês estão? Entrem por favor.
- Tudo ótimo, estávamos voltando de viagem e decidimos passar por aqui..
- Onde a Mélanie está? – Perguntou Bernard.

Ofereci sofá num gesto com as mãos.

- Ela tá trabalhando ainda, mas deve voltar pra almoçar.
- A sim...
- E vocês dois, como estão? – Novamente Bernard com suas perguntas.
- Estamos muito bem, nos encontrando juntos como sempre.
- Que lindo! – Disse Noelle.
- Por onde estavam viajando? - Perguntei
- Fomos passar alguns dias no Rio (de Janeiro). Aquele sol todo não é de se desperdiçar.

O velho safado com certeza estava de olho nas mulatas!

A porta se abria, era Mélanie chegando quando já era a hora do almoço. Seu pai assistia Tv, ele amava golf. Eu e sua mãe
cozinhávamos juntos com uma taça de vinho nas mãos.

- Mamãe! Pai! Que surpresa maravilhosa! – Não conteve a alegria em seu rosto.

Eles se abraçaram, trocaram carícias e elogios. Veio até mim, me beijou e pegou uma colher para experimentar o molho que fazíamos para o macarrão.

- Minha nossa, que delícia! Eu não acredito que você fez isso.
- Meu amor, é claro que não fui eu. Sua mãe manda, eu faço.
- Mél, esse menino tem tudo pra impressionar na cozinha.
- E eu não duvido, o problema é o que está em sua mão.

Olhou para a taça.

- Culpa da sua mãe. Ela insistiu, não resisti ao charme.

Me olhou aceitando minha desculpa esfarrapada.

Almoçamos como uma família. Uma família feliz que se reunia poucas vezes, mas a vontade de estar junto se mantinha a mesma.

- Nossa, já é tarde. Eu tenho de voltar pro trabalho, vocês voltam pra São Paulo hoje?
- Sim, mas só de noite.
- Se não atrapalharmos seus planos, gostaríamos de leva-los pra jantar.

Olhamos um para o outro, não entendi o que Mélanie procurava.

- Claro... Por que não?

Mélanie voltou para o trabalho, seus pais saíram durante a tarde toda para da uma volta pela cidade, enquanto isso, eu aproveitei para por o trabalho em dia. Minha coluna estava a toda agora que eu era oficialmente um desocupado sóbrio ex fumante, ex amante... Não estava arrependido, apenas refletindo sobre minhas influências literárias e hobbies para o dia a dia.

Quando eles voltaram, eu já estava no final do processo de edição de texto, meu cérebro mandava a concentração ficar mais nos erros de português e menos na saudade do tabaco. Bernard tomava um banho, Noelle brincava com o pequenino Billy.

- Você gosta de comida japonesa ou prefere italiana?

Porra, eu prefiro o bom e velho bife mal passado, mas como dizer isso? Simples:

- Não sei... Gosto dos dois, o que a senhora preferir.

Não estava mentindo ou fugindo de alguma iniciação de conversa. Eu tinha um trabalho a cumprir, finalmente sentia prazer em trabalhar novamente.

Mélanie chegou do trabalho, por volta das sete e meia da noite, se enfiou no chuveiro, infelizmente, sem a minha ajuda para escolher o que usar por de baixo de sua saia preta de seda ou apenas para esfregar as costas no banho. Saiu do quarto pronta, assim como seus pais, menos eu, é claro, sempre o último, mas como dizia meu pai: não é chique estar pronto no horário. Saudades dos conselhos do velho sabichão.

Fiquei pronto em menos de quinze minutos, coloquei meu terno, gravata fina, o perfume favorito de Mélanie, mas ainda consegui uma apertada forte no braço e a cobrança pelos preciosos quinze minutos de trânsito para chegarmos no restaurante caríssimo que o meu cartão de crédito se recusaria a pagar.

Não tínhamos reserva, mas o “papai” Bernard deu seu jeitinho para nos colocar dentro da festa. O garçom se apresentou, entregou os cardápios e escolhemos rápido, eu nem sequer sabia o que tinha pedido, não sei falar italiano...

Dei uma olhada em volta, eles falavam sobre os futuros trabalhos de Mélanie e sobre a viagem do casal. Muitos casais em volta, todos pareciam felizes demais, muitas rosas sobre as mesas, até um pedido de casamento aconteceu por lá. Dois caras estavam sentados sozinhos em uma mesa, assim como você, eu também pensei nisso, mas olhando bem para a mesa: uma garrafa de whisky pela metade. Eram apenas dois solteirões caçando. Dei uma risada solitária.

- Mélanie! Quanto tempo...

Olhei para quem se aproximou.

- Eduardo!

Filho da puta... Eduardo era um ex-namorado de Mélanie, o viado era um cirurgião plástico daqueles que cobram o olho do cara para tirar tudo o que você tiver em um lugar e colocar em outra parte do corpo, só que um pouco mais empinado. Loiro, olhos claros e o maldito sorriso. Eu tinha ficado sabendo que ele estava de volta na cidade e que ainda pensava na MINHA mulher, que por sua vez esteve em dúvida entre qual dos dois ela escolheria. O escritor com defeito mental ou o cirurgião de pau pequeno e cartão de crédito feito de ouro.

Não podia fazer nada, meus argumentos eram fracos, os pais dela estavam ali e eu era um novo homem, ou melhor, em processo de mudança.

- Le... andro, certo?
- Continue tentado. – Apertei com força sua mão.

- Leonard. – Disse Mélanie me olhando feio.

Soltei a mão dele pra que ela fosse colocada sobre a nuca de Mélanie, que maravilha!

- Eu adoraria que pudesse ficar mais, só que tenho um compromisso. – Ele tentou olhar o decote dela. – Te ligo pra combinarmos um... Cafézinho?
- Claro!

Queria engolir o orgulho, mas engoli toda a água que estava no copo sobre a mesa. Minhas mãos formigavam.
O jantar seguiu no mesmo ritmo, eles conversavam, quando necessário eu respondia, às vezes puxava algum assunto para ter o que conversar, principalmente com Noelle.

- Leo?
- Sim.
- Você não respondeu a minha pergunta.
- O que você disse?
- O que quer de sobremesa?
- Nada... Só um café, sei lá.
- Café?
- Você está bem Leo? – Perguntou Noelle. – Parece distraído.
- Coisas do trabalho, nada demais. Eu vou querer o que você pedir Mél.
- Tá.

Paguei metade da conta, Bernard não queria que eu pagasse nada, eu deveria ter aceitado...

Os dois foram na frente até o carro, eu esperava Mélanie voltar do banheiro. Pude ver Eduardo sentado em sua mesa com uma acompanhante morena, alta e bela. Ele sorria olhando para mim. O destino me amava. Seu sorriso aumentou quando viu meu claro descontrole com as batidas com a ponta do pé no chão, acenou para mim... Era um homem morto!

Parei ao seu lado na mesa, ele continuava com sua cara de deboche e superioridade.

- Desculpe atrapalhar, mas posso perguntar uma coisa?

Soltou o ar de deboche olhando para sua acompanhante com desprezo pela minha interrupção.

- Você é um cirurgião, certo? Eu queria saber uma coisa...
- Seja rápido, por favor, estamos tentando jantar aqui.
- Há dois tipos de acidentes, o proposital e o “acidental”. Suponhamos que os freios do seu jaguar lá fora sejam cortados, você
sofre um acidente de carro e teria de passar por uma reforma física.

Ele estranhou o tom da conversa.

- Mas se acidentalmente um garfo ou uma faca caísse sobre a sua mão, que assim como a minha, é o seu objeto de trabalho. Bom, vamos direto ao ponto... Qual você teria mais trabalho para corrigir?

Ele estava assustado. Antes que dissesse algo, olhou para o garfo em sua mesa, para mim e novamente para o garfo. Rapidamente colocou sua mão sobre o talher. Eu sorria. Com a mesma velocidade acertei um cruzado de direita em seu olho esquerdo, ele caiu com a cadeira.

- É sempre bom falar com você “Dudu”.

Alguns funcionários se aproximavam enquanto eu já me direcionava para fora do restaurante, Mélanie me esperava na porta, ela viu toda a cena.

- Eu nunca tive de escolher entre vocês, sempre soube quem era o meu homem.

Ela estava dentro da minha cabeça?

- Feliz dia dos namorados seu brigão. – Me beijou com tanta vontade que eu mal tive tempo de pensar, apenas respondia com a língua.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Seguindo Em Frente


Estávamos deitados em sua cama ainda nus, sentia como se fosse a primeira vez que ficávamos daquele jeito, nos sentíamos completamente vulneráveis. Ela mantinha a cabeça deitada em meu peito, eu sorria para o teto lembrando-me da noite passada.

- Leo, se nós vamos continuar com isso teremos de estabelecer certas “regras”.
- Regras? Como assim?
- Precisamos ser sinceros um com o outro.
- Claro.
- Quer começar?
- Com o que?
- A falar sobre as coisas que nos afastaram ou que não gostamos.
- Tá. Sinceramente? Eu não gosto de nenhum dos seus amigos pé no saco.
- O que? – Ela levantou a cabeça para me olhar nos olhos. – Você nem sequer deu uma chance pra gostar deles.
- Gastei todas as minhas chances nos primeiros fins de semana. Não dá, são todos uns babacas de cabeça pequena que com o primeiro toque diferencial já saem babando nas bolas dos outros.
- Olha como fala! Você nem sóbrio ficava pra conhecer eles
- E tinha como? Aquele papinho medíocre me dava sono...

Respirou fundo.

- Quer saber? É a minha vez. Eu não sei, nem quero saber o que você fez esses meses, só queria te ver antes de ir embora.
- Embora?
- Eu encontrei com o Alex, ele me disse que você iria pra Minas cedo ou tarde.
- É... – Fiquei constrangido com o que viria a seguir. - Eu não vou pra lá.
- Não? Então por que a mudança? Pra onde vai?
- Não vou, eu voltei. Passei os últimos meses lá, estou de mudança por que vou sair do meu velho apartamento pra um lugar onde eu possa me manter limpo.
- O QUE?! E quando iria me contar isso??
- Calma... Eu tentei, mas você mudou seu telefone quando me largou.

Ela me olhava furiosa, eu sorria tentando melhorar o clima.

- Você sabe muito bem por que eu fui embora.

Não tive palavras.

- Você a escolheu, Leo. Não a mim, ela.

Meu sorriso se foi.

- Não podemos estar em um relacionamento se você diz me amar tanto quanto ama ela. Pra ficarmos bem, para o seu bem, você não pode desistir da reabilitação como fez, não pode continuar afastando as pessoas da maneira que passou a sua vida inteira tentando encarnar na alma de um bando de bêbados cheios de sujeira dentro de suas almas.
- Meu bem... – Segurei sua mão. – Eles escrevem para limpar a sujeira. Confie em mim, não sou o mesmo.

Ela sorriu com lágrimas nos olhos, me beijou assim que as lágrimas começaram a escorrer por seu rosto. Fizemos sexo, outra vez, como se fosse a primeira vez juntos. Era magnifico me sentir vivo de novo, minha cabeça ainda estava confusa, mas não deixava que ela pensasse por muito tempo, tinha de usar a outra cabeça naquele momento.

A mesa estava toda arrumada, pratos, talheres, uma taça de vinho, seria um almoço delicioso feito por Mélanie. Nos sentamos, ela sorria para mim, devia estar pensando em alguma das posições que fizemos durante a manhã.

- Então, o que achou? Passei um pouco do ponto?
- Não diga isso meu amor, você tá no ponto, coisa divina!
- Há há, seu bobo, não falei de mim, era da comida.
- Não tão boa quanto você... Está ótima.

Sorriamos um para o outro.

- O que faremos hoje? – Ela me perguntou.
- Estava pensando no que conversamos de manhã.
- E...
- Por que não fazemos assim, saímos com seus amigos essa noite.
- Como é? Você não disse isso só pra me agradar não é?
- Agradar? Já te agradei demais essa noite. – Pisquei para ela que me mostrou a língua.
- Tá bom, se é o que quer.

Terminamos de comer, ela saiu, alguém tinha de pagar as contas, certo?

Sentei no sofá, liguei a tv em algum programa sobre a vida animal, Billy assistia com muita atenção. A cena era épica, eu de samba canção, barriga para cima e a expressão de vazio no rosto, Billy ao meu lado com as orelhas armadas e o olhar fixo para a tela colorida de alta definição. Me dei conta de que precisava sair do sofá antes que meu dia fosse completamente consumido pelo tempo passado.

Ajeitei as folhas de papel sobre a mesa, apontei o lápis e comecei alguns rascunhos em francês. Queria surpreender Mélanie com um pequeno poema. O dicionário era meu companheiro naquela batalha. Como começar? Deveria arriscar nas palavras? Escreveria em português primeiro? Enchi uma taça de vinho, comecei a escrever da maneira mais fácil, brincava com palavras e frases. Consegui - não fui autorizado a publicar o poema.

Já passava das sete horas da noite quando Mél voltou e me surpreendeu, eu estava na janela fumando APENAS o segundo cigarro do dia.

- Leo!
- Oi...
- Você sabe que precisa parar com isso.

Pegou o cigarro da minha mão e jogou pela janela ainda aceso.

- Mél, você sabe que não é fácil. E esse é o segundo do dia só.
- Não importa, eu tô aqui pra cuidar de você. Cadê o maço?
- Maço? Não tenho...
- LEO.

Ela jogou meu maço inteiro no lixo, meu triste pulmão chorava por dentro, meu coração sorria esperançoso.

- Vem, vamos tomar um banho que daqui a pouco vamos sair.
- Opa! – Nunca estive tão feliz para o banho.

Chegamos no bar, luzes neon na porta, nas janelas e no nome de identificação do lugar. Muita gente aproveitando a sexta feira com roupas curtas e double chopp. Sentamos junto dos amigos dela, estavam todos lá. Me encaravam com estranheza, deviam pensar “esse cara nunca vai embora?”, “o que será que ela vê nele?”, “provavelmente tem um membro espetacular, ela é muita areia pra esse metido a poeta.”. Minha imaginação de bosta.

Cumprimentamos a todos, pedimos um chopp pra ela e um suco de laranja pra mim. Ela estava sentada de frente para mim, odiava quando fazia isso, não conseguia brincar com suas pernas por de baixo da mesa. Era uma tortura.

- Memél você não sabe onde a Vanessa anda se metendo. Ou melhor, em que...

Impressionantemente era um homem se dirigindo a Mélanie.

- Nem precisa contar, já sei das histórias dessa “zinha”.

Não iria dar certo, logo no começo da noite e eu já sentia vontade de voltar para casa e me enfiar naquele sofá outra vez. O problema não eram os amigos dela, nem as conversas, claro que a falta de álcool no sangue esquentando meu cérebro e me arrancando assuntos surpreendentes estava distante, mas era a mudança em mim que me surpreendia.

- Não vai tomar uma dose com a gente hoje? – Lucas, um dos amigos dela, me perguntou.
- Deixa pra próxima, hoje eu dirijo.
- E o que tem? Você sempre dirigia bêbado com Mélanie do seu lado.

Desgraçado, queria me tirar do sério com tão pouco? Mantive a calma, ele estava certo.

- É, eu era assim.
- Ei, trás umas tequilas! – Pediram para o garçom mais próximo.
- Tequila! – Gritavam todos juntos.

A vibração como se fosse o gol do título.

Continuaram com conversas sobre coisas que não me atraiam como o sofá da sala ou as pernas escondidas de Mélanie.

- E então Leo, o que fará da sua vida agora?
- O que sempre fiz, correr atrás do que eu quero.
- “Só” isso? Há há, não é fácil né?
- Nunca será, mas a gente vai lutando enquanto ainda sobram forças.
- Boa cara!
- Corajoso você.

Por que ela só conhecia homens? Essa mulher me levaria à loucura outra vez, não me restava dúvidas quanto a isso.

Passamos por longas horas naquele bar, eu não tinha engolido uma única gota de álcool, enquanto ao meu redor todas, inclusive Mélanie, estavam bêbados e a conversa já chegava no seu ápice de embriaguez.

- Leo, vai cara... Acompanha a gente só nessa!
- Vamo!

Olhei para Mélanie, ela me observou a noite inteira, comecei a pensar que ela deveria ter percebido que eu estava mais dormindo do que interagindo de verdade, eu tive de reagir. Todos esperavam a minha reação, principalmente eu.

- É... – Voltei o olhar par ao grupo. – Talvez não seja a melhor hora... – Olhei par a ela, depois para o copo e para o pessoal. – Já está tarde gente, deixa pra lá. – Um sorriso falso.

Tive de carregar Mélanie até o carro, ela, assim como todos naquele bar, estava completamente bêbada. Falava algumas besteiras, eu não entendia absolutamente nada. No carro ela apagou, como mágica, ela sempre dormia quando estávamos no carro em movimento. Era uma graça.

Em casa, é claro, ela sentiu o enjoo, não é fácil assumir a bebida dentro de si. Cuidei dela como se trata um bebê, dei banho, ajudei a por a sujeira pra fora e ouvia coisas sem muito sentido. Ela estava deitada na cama, ainda nua, de costas, meus olhos brilhavam. Como era possível uma pessoa ser tão magnífica? Não apenas seu corpo, mas a paixão que saia dela, toda a graça em seu jeito de ser, meu coração palpitava olhando para a mulher que ia além dos sonhos, ela era real, assim como seus defeitos e suas perfeições.

- Obrigada por ter sido tão bom conosco hoje, você é especial Leo, não se esqueça disso.

Daquele dia em diante eu não me esqueceria disso jamais. Nem sempre na vida de um escritor é preciso carregar apenas dor.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Para Sempre Juntos

A mesma rodovia por onde eu passava quando criança caçando o fórum com meu pai, ou quando íamos visita-la (minha amada avó) no litoral, todos dentro do carro felizes por estarmos de férias. A mesma ponte que dá para a entrada da cidade. Os mesmos carros velozes de um lado a outro da pista com esperança de chegar em casa antes do anoitecer. Seja bem vinda São José dos Campos, estou de volta.

Depois de quase três meses fora buscando novos ares nas profundezas das Minas Gerais, novas inspirações nas escrivaninhas dos velhos autores do café com leite, novos amores por de trás da infinidade de morros gelados e solitários, sim, eu podia dizer que era bom estar em casa, a minha cidade que me trouxe tanto bem quanto mal ao longo de toda minha carreira e vida.

Nada parecia diferente, ao mesmo tempo em que tudo era como novo aos meus olhos míopes. Billy parecia contente em rever as coisas que ele não conhecia. O pequenino já estava com certo tamanho e força para bagunçar as malas no banco de trás.

- Ei, seu viadinho! Para com isso, logo estaremos em casa e você pode bagunçar aquela porra toda.

Não adiantou.

Meus primeiros dias como um projeto de mineiro foram um fracasso. Não saia da pousada para nada, Billy brincava, bagunçava, corria e latia enquanto eu fumava o que me sobrou de pulmão, bebia e sentia pena do que tentava escapar. É fácil sentir pena de si quando não a outra ambição para se viver. Escrever? Nem em pensamento. Sobreviver, apenas.

Quando decidi sair e encarar o gelo chamado Ouro Preto outra surpresa, meus pulmões não existiam mais. Por pouco não caia morro a baixo, meu peito sofria com tudo aquilo, era angustiante sentir aquele peso todo. Chegara a hora de parar de fumar. Uma semana, um dia, uma hora, eram as minhas expectativas e realidades falhas.

Virei à esquina em que por anos permanecia adormecido, ou desacordado por razões mais fortes do que eu, lembranças desagradáveis para quem ainda pode se chamar de jovem promissor. Estacionei em frente ao bar do Arthur, teria de encara-los com a cabeça erguida, estava determinado a sofrer mudanças.

- Meu Deus! O que Diabos fizeram com você rapaz? – Perguntou Arthur.
- Quem é ele?
- Está vivo!

Olhei ao redor, olhei para Artie e respondi.

- Olá meu velho. – Dei-lhe um pelo sorriso simpático, era um dos poucos que eu chamaria de companheiro.

De uma coisa admito que eu sentirei falta, daquela comida acompanhada de um cafezinho feito na hora. Não foram tempos terríveis para meu estômago. Acordava com os olhos inchados de ressaca, sem nem sequer levantar a cabeça para olhar quem direcionava a palavra a mim, até encontrar com a mesa da pousada cheia de delícias e com aroma de café forte. Me tirava da depressão por alguns breves momentos de prazer.

Entramos no pequeno apartamento que me acolhera e cuidara de mim por anos. Era triste entrar sabendo que seria a última vez. Os novos ares sopram, não posso decepcionar mais a mim mesmo.

- Então é isso que você quer? – Perguntou Arthur.
- É meu velho... Não dá pra voltar atrás, já me decidi e – Suspirei forte. – vamos em frente. – Olhava para a escrivaninha onde estava minha máquina de escrever.
- Tá legal. Vou te deixar sozinho arrumando suas coisas, se precisar de algo é só descer pro bar.
- Valeu Artie.

Depois de quase um mês sem nem olhar para uma folha de papel, ao menos não com pensamentos literários, apenas com vômito nos lábios. Decidi tomar iniciativa e voltar ao trabalho. Joguei todas as garrafas vazias no chão, limpei a mesa, coloquei um cinzeiro e um copo cheio (café com pinga). Olhei para a folha e nada. Olhei para o copo e disse “que venha a inspiração.”, virei. No fim da garrafa de pinga a inspiração, se é que veio, passou despercebida. Acordei deitado no chão ao lado da cama enquanto Billy dormia tranquilamente em meu lugar no colchão macio. Seria essa a evolução? O homem virando bicho e o bicho virando... Homem?

Parei para descansar depois de empacotar tantas coisas. Sentei na beira da cama, sentia vontade de fumar. Por que tão satisfatório? Tive de voltar ao trabalho sem descansar para evitar que um cigarro aceso subisse em minha boca.
Livros e mais livros nas caixas surradas que peguei no estacionamento de um supermercado. Até que encontrei uma foto escondida atrás de um livro do Leminski. Linda e sorridente, a mais encantadora de todas, a única que não se transformou em tempo passado. Atrás da foto um bilhete carinhoso:

“Que permaneça vivo enquanto ainda respirar. Não esqueça de que vale a pena ceder a sorte de amar – Eu te amo seu barbudo romântico”.

Surpresa, um cigarro aceso em meus lábios, as mãos coçando a testa.

Depois do fracasso em tentar retomar minha alma não consegui sair do quarto por alguns dias, nem fumar, nem comer ou beber. Eu passava o tempo inteiro deitado lendo, olhando para um céu nublado que me mandava ficar calado, quase como vegetal. Nem mesmo Billy tinha ideia do que fazer, o pobrezinho tomou conta de si com o que encontrava jogado pelos cantos ou dentro das malas.
Acordei com as malditas dores outra vez, era o dia mais feio de todos os quais passei lá, nem mesmo o céu tinha voz. Tentei me levantar, era contido pela dor e arremessado de volta para a cama em agonia. Billy dormia sem ter consciência do que estava para acontecer. Pensei que teria um infarto, meus nervos estavam à flor da pele, minha loucura tomou conta. Rolei para fora da cama, dei de cabeça com a quina do criado mudo, sangue escorria entre meus olhos.

Quase tudo pronto, outra pausa para tomar água. A foto continuava lá me observando, dizendo o quanto sentia minha falta. O que eu poderia dizer? Era apenas uma foto...

- Você não pode desistir, Leo.
- O que? Quem tá ai?
- Adivinha. Olha pra trás seu lerdo.

Me virei, era ela, a foto.

- Oi.
- QUE PORRA É ESSA?!
- Calma, só presta atenção no que vou te dizer, não tenho muito tempo.
- Tempo? Você é uma imagem num pedaço de papel, pra que precisa de tempo, você é a marca de que é possível pararmos o tempo!
- Cala a boca e me escuta! Você não pode desistir, é confuso, mas está no caminho certo.
- Do que você tá falando?
- Das suas decisões. Essa é a escolha certa, voltar, tomar outro rumo para sua vida.
- Eu sei disso.
- Então por que fraqueja?
- Não é fácil mudar as coisas tão rápido.
- Eu sei, mas estou do seu lado para te apoiar. Seja forte meu querido.

Estava quase alcançando a porta. A dor aumentava, eu mal conseguia respirar, estava tudo girando. Com as pernas bambas consegui me jogar contra a porta, não iria me segurar em pé se desse outro passo. A maçaneta parecia escorregadia, meu sangue se juntava com suor e medo. Juntei minhas forças, soquei a maldita porta. O animal crescia, o homem sumia – sou um babaca.

Deixei as caixas de lado, sentei de frente para a máquina, não me sentia vivo naquele momento. Encarei o papel, sentia ódio dele “por que tão branco e cheio de vazio?”, pensei. A foto não falava mais. Pressionei meu punho contra a mesa, a pressão dentro do meu cérebro aumentava. Impulsivamente joguei tudo que estava sobre a mesa no chão, menos a máquina. Nos encarávamos como duas bestas num campo de batalha. Era agora, comecei a bater nas teclas com raiva, estava furioso e sem nem mesmo ler o que saia fui escrevendo, escrevendo, escrevendo até que não tinha mais espaço na folha, já tinha saído o que era necessário por pra fora. Estava tudo lá, me olhando com um sorriso sádico.

Encostado na parede consegui abrir a porta devagar, meu tempo estava acabando, assim como minhas forças. Billy acordou e saiu correndo atrás de mim no corredor, ele latia para que alguém aparecesse. Fui me arrastando pelos cantos, a pressão contra meu peito ficava mais forte. A escada estava bem a minha frente quando tudo ficou escuro.

Quando acordei já era outro dia, eu estava deitado em uma cama de hospital sozinho. Uma enfermeira me deixou a par do que havia acontecido, as dores no peito eram por estresse e depressão, meu pulmão doía por que sou fumante, obviamente. O que me fez ser levado ao hospital foram o corte na testa e o fato de eu ter rolado escada abaixo. Me seguraram naquele lugar deprimente até o fim da tarde. Sai de lá com a cabeça ainda girando, muito confusa.

Andei pela cidade sem ser percebido, sem percebê-la também. Seguro de que Billy estava sendo bem tratado pela dona da pousada, continuei minha trajetória por pensamentos. Eu só queria limpar a minha cabeça, deixar a sujeira sair e ganhar uma nova chance. De que? Logo eu iria descobrir.

Terminei de encaixotar minhas coisas, o que ficaria lá seriam apenas móveis velhos e gastos, sonhos esmagados, suor, tristeza, força de vontade, amor, belas histórias, boas brigas, grandes festas, um coração.

Sentado na beira da cama eu brincava com Billy, precisava deixar as coisas se assimilarem naturalmente dentro da minha cabeça antes de sair do meu castelo. Enchi uma vasilha com água para ele, uma dose de whisky para mim, era apenas uma dose para fechar um ciclo.

Voltei no outro dia para a pousada, já tinha algumas decisões bem encaminhadas em minha mente. Agradeci a senhora por tomar conta da criança, me desculpei por tudo, devolvi as chaves e, depois de encher meu carro com malas e más recordações, peguei a estrada pela última vez. A viagem seguiu tranquila com muito café, alguns poucos cigarros, eu ainda estava assustado com o ocorrido. A música que tocava não penetrava meus pensamentos, eles estiveram por longas 10 horas focados em objetivos mais concretos do que o velho sonho de ser um rock star.

Levantei o copo como reverencia a meu templo, virei sem pena da minha saúde. Bateram na porta. Abri, meu coração subiu para a boca, estava sem palavras para o que meus olhos me mostravam.

- Oi. – A voz mais doce que encantou aquele lar.