terça-feira, 22 de abril de 2014

Pré-Show


Apoiava minha cabeça pensativa em minhas mãos, mantinha os olhos fechados e a respiração cronometrada. Com alguns drinks e cigarros começava a me acalmar. O pescoço relaxava, o tique nas pernas era constante, mas o olhar mantinha-se focado no que ainda estava para acontecer. No momento em que eu saísse daquele camarim enfrentaria toda a plateia sozinho, isso se não tropeçasse no palco ou entrasse em pânico. Nunca fui bom em manter pensamentos positivos.

Minhas tentativas de manter o controle eram momentâneas. Quanto mais nervoso eu ficava, mais vezes eu revisava meu material para o espetáculo, meu setlist. Não me sentia seguro com meu potencial, não me sentia seguro naquele terno barato, minha barba coçava, meu tique piorava e eu estava bêbado faltando alguns minutos para começar o que nomearam de “atração principal”.

Algumas pessoas ainda estavam dentro do meu camarim bebendo e celebrando a minha grande noite, demorei a me dar conta de que conhecia três, talvez quatro dentre eles. Por sorte me escondia por trás dos meus óculos escuros e da fumaça dos meus cigarros, acendia um no final do outro. Com tapinhas nas costas e palavras de incentivo elas saíram me deixando em paz com meu desespero.

No momento em que todas saíram, tranquei a porta, ou melhor, chutei a poltrona até parar atrás da porta. Cadeiras arremessadas contra a parede, quadros e espelhos rachados com socos e pontapés, cinzeiros atirados pela janela e restos de garrafas espalhados pelo chão. Me acomodei na poltrona novamente, após respirar fundo tomei um longo gole até não sentir mais nada. Podiam arrancar meus dentes naquele momento, eu estava livre.

Fui até o que sobrará do espelho, ajeitei a gravata, puxei os pelos da barba para baixo, assim como meu cabelo. Treinei um sorriso, não conseguia nada perto do que pudesse se chamar de natural. Acendi outro cigarro enquanto tirava a poltrona do caminho.

Podia ouvir o mundo ao meu redor outra vez, as vozes impacientes pela apresentação da noite, os organizadores assustados com o barulho que devo ter feito trancado naquele camarim. A última golada, eu estava livre. O sorriso veio fácil como o tropeço que eu daria ao subir no palco.

As luzes ofuscavam a minha visão, recoloquei meus óculos e então pude ver tudo, uma escrivaninha, um frigobar cheio de cervejas e uma multidão de cabecinhas escuras como sombra, essas cabecinhas gritavam meu nome, já estavam pegando fogo. Eu sentia o fogo dentro do meu peito esquentar cada vez mais. Coloquei meus escritos sobre a mesa, abri uma cerveja e, logo depois de um rápido arroto, dei início ao show.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Opostos


Ele tinha seu horário específico de almoço, sempre a partir das 14, assim evitava fila para fazer seu prato, consequentemente, evitaria crianças reclamando dos vegetais e executivos apressados engolindo suas refeições que até levavam seu nome (prato executivo). Já conhecia o churrasqueiro, então conseguia as melhores fatias de carne, sua amada carne praticamente crua jorrando sangue.

Por conta do trânsito e da reunião que estava sempre atrasando seus compromissos, Ela chegou atrasada no restaurante. Com seu inseparável fone de ouvido fez seu prato com muita salada, uma porção de arroz integral e uma pequena fatia de peixe. Pediu um suco de laranja para acompanhar. Sentou-se distraída com a música, seu chefe era o maestro da orquestra sinfônica que tocava em seus pensamentos.

Por debaixo da mesa Ele abria seu cantil, despejava seu conhaque dentro do copo com gelo, em seguida misturava com um dedo de coca. Ela o assistia fazer isso paralisada por meros segundos sem entender. Retomou ao seu suco, puro. Logo voltaria a observa-lo comendo seu pedaço de boi abatido para churrasco.

Quando Ele chegou ao terceiro copo e ainda não tinha comido metade da comida em seu prato Ela tomou a iniciativa.

- Eu não sei pra quem você quer se mostrar. Mal se esforça pra esconder essa garrafa.

Ele a olhava calado esperando que terminasse o que dizia.

- Talvez eu não queira me mostrar pra ninguém, talvez eu só queira tomar meu drink.

Ela respondeu com um som de deboche e descrença.

- De qualquer forma, fico feliz em saber que chamei sua atenção.

Agora com um sorriso no canto do lábio de vergonha Ela disse:

- Não sei o que deve te matar primeiro, essa carne quase crua ou cirrose.
- Não pretendo morrer assim.
- Você tem um plano pra morrer?
- Claro! Pretendo morrer com uma bala perdida ou algo do tipo.
- O que?
- Se eu salvar uma velhinha na rua ou uma criança e tomar um tiro certeiro, eu morrerei como herói.

Ela o olhou com seu jeans velho, sapatos gastos e uma velha camisa preta desbotada tirando suas próprias conclusões.

- É, só desse jeito...

Ele sorria encarando o belo par de olhos a sua frente.

- Você gostou de me analisar? E quanto a você? Toda certinha com sua salada, seu suquinho e, há há há, essa roupa de executiva moderna.
- Quem você pensa que é?!
- Vamos lá mulher, mostre um pouco mais dessas pernas! Um botão? Abre uns dois ou três, deixa as crianças respirarem. Com essa camiseta de seda fechada até o pescoço fica difícil!

Levantou-se, foi até a mesa dela. Abaixou-se e disse:

- E por último, você não precisa de tanta maquiagem. Tem um rosto lindo e natural, aproveite isso.

Não trocaram mais nenhuma palavra até ambos terminarem suas refeições e se direcionarem até o balcão para pagar a conta. Ela saiu do banheiro ainda atordoada e o encontrou na fila.

- Essa fica por mim conta.
- Não preciso que você pague. Não me deve nada.
- Eu sei, mas faço questão.
- Olha aqui, você fala como se fosse o dono de todas as verdades!
- Ei, eu só quero pagar a conta pra você. Será um prazer.
- Então paga logo. – Entregou a conta já impaciente.
- Obrigado... Valentina
- Esse não é meu nome.
- É um lindo nome, combina com seu rosto.

Quinze anos depois eles sairiam daquele mesmo restaurante acompanhados de uma linda menina, Valentina, a primeira filha do casal.